Hoje está muito calor. Os vidros da montra e das portas estão cobertos de mosquitos irritantes. No muro ali em frente, do outro lado da rua, enfileiram-se milhares de minúsculas formigas.O livreiro fecha as portas para não ser comido pelos mosquitos, decomposto pelas formigas, derretido pelo calor. Encosta as portas mas deixa a tabuleta “ABERTO”. Olha para o computador e sente saudades do livro que deixou na página 384. Ali mesmo, onde Sophie e Hans se preparam para traduzir Bocage e Leopardi. “O Viajanet do Século”. Que deleite!
Passam poucos minutos das três da tarde e já espreitou a Internet: As últimas da ópera bufa dos impostos; da Feira do Livro de Lisboa que, este ano, teima em não acabar; Da Feira do Livro do Porto que, este ano, arrecadou para si toda a polémica; espreitou, muito de mansinho, para ela não dar por isso, a conta no banco… Melhor dito: a “desconta”(!) do banco!
O livreiro não sai de trás do balcão e olha para “O último leitor” e “Santa Maria do Circo” que, numa das mesas em frente, o chamam. Lá perto, “O físico prodigioso” não consegue mezinhas para esticar o tempo. Tempo para ler o que é preciso. O que apetece.
Mais uma mirada à Internet, outra vez um saltinho aos blogues literários e salta a palavra “bibliodiversidade”. Sim, é o que oferecem as livrarias independentes. Mas independentes de quê? De quem? Se o livreiro fosse independente queria ser livro! Isso sim! Diria o que quisesse. Faria o que lhe desse na real gana… até que o queimassem… Ou guilhotinassem!
Mas o livreiro não é livro. É, apenas, livreiro. Aliás, talvez nem isso! Basta ir à Repartição de Finanças e procurar pela lista de profissões. Não há.
Na Argentina, chamou-nos para isso a atenção o blogue da revista Ler, foi fundada a primeira escola de livreiros do País. Na apresentação dizia o respectivo Secretário Estado da Cultura, Jorge Coscia: «La palabra "librero" adquirió un gran prestigio en la cultura argentina. Aparece en el paradigma primero como un hombre que ama y conoce los libros y está grabada a fuego en esta hermosa tradición de la actividad editorial».
Atrás do balcão o livreiro - português, de província, ainda por cima - dá uma espreitadela para lá da montra, para lá dos mosquitos – alguém mira os livros expostos enquanto dura um cigarro. O cigarro acaba-se e a beata vai para o chão. A senhora - é uma senhora - apaga-o com a ponta bicuda do sapato não vá incendiar as pedras da calçada. O livreiro baixa os braços do teclado e prepara-se para ir buscar a vassoura. Livreiro todo-o-terreno, como dizia a colega Lena ao queixar-se das limpezas, dos caixotes, das facturas, das prateleiras, de tanta coisa e da falta de tudo.
O calor não dá tréguas. Nada dá tréguas. Ninguém dá tréguas.
O tempo, principalmente, o tempo, o do relógio é que não dá tréguas mesmo. Na sua construção do passado, da história, da memória.
Da memória do que queríamos ter feito.
O livreiro livra-se, fecha a porta e vai bugiar.
Sines, 20 de Maio de 2010
Joaquim Gonçalves
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